A alma contém o corpo
“Antes, é a alma que contém o corpo e lhe dá unidade, do que inversamente.”
Tomás de Aquino
Summa theologiae, I, q. 76, a. 3. co.
Mesmo os cristãos mais sinceros e bem educados têm hoje a tendência de pensar que é o corpo que contém a alma, e não o contrário. Essa crença profunda e inefável se faz sentir mais pelas atitudes espontâneas, e pelas outras crenças que coexistem pacificamente com ela, do que por discursos explícitos. É, por exemplo, artigo de fé incontestável hoje em dia que a saúde de alguém é o produto tão somente de sua fisiologia, desse arranjo complexo de diversos órgãos e substâncias que operam a todo instante como uma máquina fisicamente determinada, e que como toda máquina pode estar bem ou mal ajustada. Ainda mais, é quase inconteste que não só a saúde, mas os estados psíquicos, as emoções, as inclinações afetivas e mesmo o pensamento são também produtos simples dessa máquina orgânica. A prova dessa fé insensata, se não me crês, podemos pedi-la à grande depuradora das intenções humanas: a morte. Quando a doença se aproxima e “toca-lhe nos ossos e na carne” (Jó 2:5), o homem moderno – e o cristão incluso – revela onde está sua esperança, e busca por todos os meios disponíveis nas diversas disciplinas da medicina moderna encontrar a peça defeituosa de seu mecanismo corporal, causa de sua desdita, a ser reparada ou substituída por meios químicos, mecânicos, enxertos etc. No trato da psique vemos exatamente o mesmo: casamentos arruinados talvez só precisem da dose adequada de “oxitocina”, os obtusos e desatentos devem promover sua produção de “dopamina”, os deprimidos de “serotonina”, e assim por diante, e chegamos ao ponto de ver, sem que isso pareça espantar ninguém, manchetes em vídeos populares na internet que aconselham: “Reprograme seu Cérebro”. Seria de se perguntar: “quem reprogramará o cérebro? O próprio cérebro desprogramado?”. Em tudo e em toda parte se sente a falta de algum elemento que dê coerência à ação. Se algo foi feito, foi feito por alguém. Nem vale objetar dizendo que vemos também atualmente muito falatório em torno do “poder da mente”, da “busca de harmonia”, da “energia do universo”, dos “estímulos magnéticos” e outras abobrinhas semelhantes; toda essa classe de discursos cai, de modo mais ou menos direto, sob a autoridade do movimento New Age, que hipnotizando um público ignorante, mistificado por jargões científicos que não compreende e nem busca compreender, produz um sentimento difuso de credulidade, a ser amarrado posteriormente às mesmas crenças materialistas do cretino moderno comum, ou aos interesses do líder da seita que o engenheirou. No cristão, que não entrará em seita alguma, nem fará meditações em busca das “energias magnéticas do universo” – espero sinceramente! – esse engano assume uma roupagem mais sutil, é verdade. Ele aceitará que o corpo dele não é um mecanismo totalmente determinado, porquanto admite a intervenção divina, de Deus e seus anjos; de modo que, se o clínico geral, o psiquiatra, a dopamina e a oxitocina falharem, ele não precisa se conformar com morrer louco, triste, e diabético: ainda pode esperar um milagre. E assim, no coração desse cristão, o universo se reparte em dois, com um abismo intransponível no meio: de um lado o corpo, infalível em seu fatalismo mecânico, e de outro Deus, que tudo domina, e portanto também o corpo. A verdade, porém, é que não era nem de longe esse o modo com que São Tomás via as coisas naquela sentença do começo deste texto. Havia, no mínimo, entre o corpo e Deus, se os imaginarmos em posição ascendente, a alma do homem. E a essa alma se atribuíam todas as funções que vemos agora despedaçadas sob os nomes “serotonina”, “oxitocina”, “dopamina”; dela se entendia provir todo impulso vital; também dela eram os pensamentos, os sentimentos, as decisões; ela era enfim o fator de unidade que tem de estar presente em todo vivente, e sobretudo no ser racional. Ela é aquele “quem?” que falta na mixórdia desconexa de fragmentos de nossa ciência. Ela é aquele “quem” que continua infeliz mesmo tomando os psicotrópicos, continua doente tomando os remédios da clínica, e que acaba louca quando, em último recurso desesperado, busca colher “energias do magnetismo universal”. Essa unidade é tão misteriosa quanto óbvia; ela é afinal quem realmente somos, e tem de tão forçosamente estar lá porque, se perguntarmos quem envelhece, quem morre, quem adquire sabedoria ou enlouquece, não podemos dizer que são estas ou aquelas peças, nem mesmo o conjunto delas; os médicos de hoje nos garantem que todas as células de nosso corpo são trocadas a cada sete anos, o que quer dizer que desde seu nascimento até a maturidade, um homem já teve pelo menos quatro corpos, materialmente considerados; e aquilo que é descontínuo não pode conter o que é contínuo. Podemos, como Santo Agostinho, confessar pecados que cometemos no berço, no colo de nossas mães, e no entanto nenhum traço material daqueles dias persiste. Se algo continua presente no corpo desde então, é porque um princípio imaterial o conserva e informa. Essa conclusão é interessante quando lembramos do problema do aborto porque dissolve automaticamente toda polêmica e põe a descoberto aquela realidade óbvia – para todos os que compreendem de fato o que foi dito até aqui – acerca da natureza do ser humano no ventre materno. Quem é ele? Essa pergunta só soa descabida porque nossa civilização se acostumou a procurar a natureza das coisas na matéria grosseira, e assim realmente pode não ser fácil dizer em quê um embrião difere de um girino. Mas considerando não a mera matéria, mas a forma e a unidade daquele ente, podemos, a título de exercício, perguntar: quem é aquele que queres abortar? Vemos com frequência casais escolherem o nome de seus filhos quando eles têm pouco tempo de gestação no ventre, e estes carregarem o mesmo nome até o túmulo. São loucos esses pais? Dão nome de gente a um punhado de células gosmentas? Ou será que quando se nomeia algo se lhe concede uma realidade, uma substância, que até então não tinha, e passa a ser gente e ter nome de gente aquilo que até então não passava de um amontoado de células? Ou uma coisa ou outra, e ambas falsas, se não é já um ser humano qualquer unidade que pode vir a sê-lo em perfeição de manifestação